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domingo, 1 de maio de 2011

Preciso achar um lugarzinho

A quantidade de livros que leio por ano está acima da média nacional (muito acima), e adoro freqüentar rodas de leitura com os escritores que fazem parte da minha biblioteca. Um deles é o Luis Fernando Veríssimo, que certa vez deu uma palestra no centro cultural onde trabalho, ocasião na qual tirei a foto abaixo.


Mesa Voadora é um dos livros favoritos, com crônicas que possuem a comida como um dos elementos centrais.

Esta pequena introdução é para dizer que estou procurando um novo "lugarzinho" para freqüentar na Ilha do Governador. Um novo butiquim barato, com boa comida e pouco conhecido. Já fui a alguns candidatos, mas nenhum conseguiu me agradar suficientemente.

Seguem trechos da crônica "Lugarzinho", do livro citado, que explica de forma maestral o que procuro.

Lugarzinho (Luis Fernando Veríssimo)

Eu conheço um lugarzinho...

Quantas vezes você já não ouviu esta frase? Dita por pessoas que conhecem todos os lugares óbvios que você também conhece mas conhecem um que você não pode conhecer, porque ninguém conhece, só elas? O curioso é que é sempre um lugarzinho, nunca é um lugar grande ou apenas um lugar. Há pessoas que ostentam lugarzinhos como outras ostentam riqueza. Especializam-se em lugarzinho, têm a volúpia do lugarzinho, só para poderem nos impressionar depois.

Nem sempre a frase é dita com a intenção de humilhar quem talvez tenha passado pelo lugarzinho — o barzinho, o restaurantezinho, o hotelzinho, a cidadezinha, às vezes até o paizinho — sem se dar conta.

— Vai dizer que você esteve em Luxemburgo e não visitou Luxemburguette, o único país do mundo que é só uma esquina?!

Pode haver o sincero desejo de compartilhar uma descoberta. Devo muitos prazeres a indicações de amigos de lugarzinhos que não estão nos guias e nos caminhos normalmente percorridos, como o restaurante L'Hangar, em Paris, impossível de ser localizado por acaso, já que fica num "impasse", uma rua que não leva a lugar nenhum. O Hangar, segundo o informante, pertence ao filho da escritora Marguerite Duras, que (uma característica de quem conhece lugarzinhos é conhecer também as fofocas exclusivas dos lugarzinhos) não se dá com a mãe. Fica no "impasse" Berthaud, que sai da avenida Beaubourg, bem perto do Centre Pompidou, também chamado de o mausoléu do Robocop. Não importa o que você pedir como prato principal no Hangar, não deixe de pedir, como sobremesa, o demi-cuit, uma espécie de pudim de chocolate cujo segredo do sucesso é vir para a mesa segundos antes de ficar pronto. Coisas de lugarzinhos.

O melhor de conhecer lugarzinhos, no entanto, é poder dar inveja a quem não os conhece. Eu mesmo já descobri a minha cota de lugarzinhos e os ostento sem misericórdia.

Vai dizer que você já andou pela região do Périgord, na França, e não foi a Collonge-la-rouge, uma cidadezinha medieval toda da mesma cor vermelha? Pobre de você.

Quando for, coma omeletes com trufas negras no Relais Saint-Jacques de Compostelle, que tem este nome porque Collonge ficava na rota de peregrinação para Santiago de Compostella, no norte da Espanha. Se quiser, use o meu nome quando pedir as omeletes. Elas virão perfeitas.

É verdade que se não usar o meu nome elas também estarão perfeitas, pois ninguém saberá de quem você está falando, mas que diabo.

Há casos em que o lugarzinho não é nada do que disseram. Casos em que houve mais ficção e desejo de arrasar você do que verdade na descrição do lugarzinho. Falaram do ambiente aconchegante e do garçom engraçado mas esqueceram de dizer que o bife tanto pode ser comido como usado para calçar a mesa. Ou então a sua experiência simplesmente não reproduz a experiência de quem indicou o lugarzinho, e naquele hotelzinho rústico tão elogiado e recomendado lhe botam num quarto já ocupado, por um rato, e depois ainda cobram a ocupação dupla. E existe o fato inescapável de que o mesmo lugar pode ser, para alguns, um autêntico lugarzinho, com todas as conotações de revelação e boas surpresas do termo, e para outros um lugarzinho no sentido de porcaria.

(...)

Mortal, no entanto, é quando o lugarzinho é usado como arma numa competição de vaidades turísticas.

— Nós fomos jantar no Tour D'Argent e...
— Não me diga que vocês foram ao Tour D'Argent e não foram ao Petit Tour.
— O quê?
— O Petit Tour. Um lugarzinho que nós descobrimos. Fica do lado!
— Nunca ouvi falar.
— Eles não querem muita propaganda. Cabeça a minha. Devia ter avisado vocês...
— É bom?
— Está brincando? É onde os cozinheiros do Tour D'Argent vão comer, depois de enganarem os turistas.

Claro que o Petit Tour não existe. Pelo menos, não que eu saiba. Mas para quem usa o lugarzinho como arma, o efeito é mais importante do que a verdade.

A coisa às vezes chega ao exagero.

— O Louvre é espetacular, não é?
— É. Mas ao lado do Louvre tem UM museuzinho...

O que pode deixar o outro com a incómoda suspeita de que viu a Mona Lisa errada.

O lugarzinho tem que ser, antes de mais nada, desconhecido, ou só conhecido por uma minoria privilegiada, ou — para ser um lugarzinho ainda mais lugarzinho — só conhecido por uma minoria do lugar. Seu charme não pode ser intencional. Isto é, o lugarzinho não pode saber que tem charme, senão não é mais lugarzinho. É como os meteoritos, que só são detectados no céu quando se desintegram, os lugarzinhos só são descobertos pouco antes de deixarem de ser, pois a própria descoberta determina a perda das credenciais de lugarzinho. Se alguém o recomendou a você, e você, claro, não vai perder a oportunidade de também poder dizer "Eu conheço um lugarzinho..." a outros, não demorará muito antes que o lugarzinho passe a ser frequentado só por pessoas atrás de lugarzinhos. Perderá toda a espontaneidade. Os preços aumentarão e é possível que o próprio lugar também aumente, perdendo o direito ao diminutivo. Se o encanto do lugarzinho era o menu escrito a giz num quadro-negro, e errado, na sua visita seguinte você descobrirá que eles estão errando a grafia dos pratos de propósito e em pouco tempo estarão vendendo pósteres com "o nosso famoso menu mal escrito". E é fácil prever o que acontecerá depois. Você dirá para alguém, convencido de que está abafando:

— Eu conheço um lugarzinho...

E ouvirá: — Não, não. Esse eu conheço. Não dá mais para ir lá. Agora, do lado dele tem um lugarzinho..."

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